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sábado, 27 de outubro de 2012

Os sessenta reais mais valiosos do mundo

Ao pesquisar o assunto da agricultura no município de Portel, encontrei esta carta, escrita por Carlos Augusto Ramos, que tem muito a ver com a realidade dos agricultores portelenses. Esta é uma bela história, gente, mas o que vem por aí não é nada bonito, postagens que revelam o lado sombrio da prática fraudulenta.

Belém, 25 de junho de 2012.
Caríssimos Manoel e Vivian,
          Em junho de 2004, conheci o rio Acuti-pereira. Estava recente de sua tragédia comunitária, o ataque da hidrofobia que vitimou dezessete pessoas na região. Na missão de elaborar um diagnóstico socioeconômico das famílias locais para iniciar o processo fundiário e debater sobre os recursos naturais locais, conheci Dona Dinalva, que vivia no médio rio. Não me lembro de Dona Dinalva não estar com um filho no colo. Parecia muito sofrida, certamente é esteio de sua casa que não conheci ainda. Alta, forte, negra, pareceria que nem a pior das tempestades marajoaras era capaz de amedrontá-la. Talvez nela eu reconhecesse a força típica da trabalhadora rural de Portel, na luta por se manter, por manter a prole, manter a casa.
         Sempre a vi participante das reuniões. Calada, tímida, estava ali nas oficinas de plano de uso ministradas pela FASE, nas reuniões sobre o pedido de Reserva Extrativista do Acuti-pereira, na apresentação do estudo socioeconômico, aquele onde peguei o murro na nuca do Sarney (história que prometo contar outro dia via carta). Toda vez a enxergava em algum evento. Lá estava Dona Dinalva no encontro de Mulheres do Marajó, ocorrida em Portel em 2007. Mas foi em um evento de capacitação de melhoramento da produção de farinha que a conheci de fato.
          O curso foi ministrado por Dona Júlia, a melhor produtora de farinha da região, reconhecida em certificados de feiras e premiações. A idéia era passar informações de como melhorar a qualidade da farinha produzida, e obviamente atuar na auto-estima das pessoas. A maioria eram mulheres. Aliás, em Portel, sempre são as mulheres as mais presentes nos encontros rurais. Eu investiria nelas. Ah, um detalhe importante: vocês dois conduziram a moderação da capacitação muito bem.
Dias depois, já com um fardo de farinha com uma qualidade bem melhor do que costumava produzir, fruto do aprendizado do curso, estava Dona Dinalva na dúvida se poderia vender a farinha a um preço melhor. Dona Júlia incentivou:
- Pode ir com confiança que tu vai vender por sessenta reais?
- Será? – disse Dona Dinalva, acostumada a vender o fardo a trinta reais.
- Vai ver...
Ao ficar por ali parada na feira, naquele zezeu de gente indo e vindo do interior, um picolezeiro de calça e sandália passando aqui, um ancião chegando de barco provavelmente para ir no sindicato acolá, pára perto dela um comprador de farinha, daqueles que provavelmente levam a produção direto para o porto de Santana, no Amapá.
- Quanto tu vende o fardo?
- Sessenta reais – meio indecisa, quase não sai a fala.
- Tá vendendo ouro, é? – e saiu o cidadão de lado, deixando Dona Dinalva na dúvida se devia manter o preço.
Aconselhada por Dona Júlia, teimou no valor e depois de muitas giradas, provadas, olhadas para a farinha de Dinalva, o comprador aceitou pagar os sessenta reais por fardo. Sua alegria, contida como sempre, veio com a certeza que valeu a pena acreditar em um curso para uma pequena mudança, um episódio que seja na economia de seu dia a dia. E acredita agora que pode ter sua situação mais digna e cidadã, por seus próprios braços e cabeça. Ta lá uma saída, não mais uma escuridão. Não foi à toa que fora um dos melhores desempenhos da oficina, pois agora, o resultado.
Decidi escrever esta carta aos dois porque vi nos olhos de cada um o mesmo que eu sentia ao desvendar um enigma em cada projeto que fazia. É como marcar um golaço de bicicleta. Existem as soluções, em algum lugar, mas é a atitude de ir atrás dela que faz a diferença. Perdido no mato, o melhor negócio é andar, pelo menos pra mim. Nestes instantes cai por terra a minha vaidade, intransigência, gabolice, arrogância. É avaliar a unidade das coisas. É transformar, ao menos um pouco, uma realidade difícil como temos em Portel, no Marajó, no Pará, na Amazônia.
        É perceber que tem sentido valorizar a pessoa e o meio em que ela vive, podendo ser usando a desculpa da farinha, do açaí, do artesanato, do camarão, da madeira, da dança, da arte, de alguns reais.
       Os sessenta reais mais valiosos do mundo.

    
       Aos mestres, escrevi.
Pantoja Ramos

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